Rugas que contam histórias: o reencontro da vida em um abrigo para idosos
No Maranhão, idosos esquecidos pela família reencontram acolhimento, afeto e esperança de recomeço.
Sentado em uma cadeira de espaguete, no pátio silencioso do abrigo, seu Boêmio observa o tempo passar. Com os olhos fixos no portão, parece esperar por alguém que talvez não apareça.

O dia começa cedo no abrigo onde vive. Apesar da mobilidade reduzida, ele faz questão de caminhar até o refeitório e, mesmo com as mãos trêmulas, tomar seu café quentinho. Os remédios são separados com atenção por uma das cuidadoras. No fundo, um rádio toca boleros antigos. Ele, tímido, apenas escuta.
São gestos simples, quase imperceptíveis para quem vê de fora, mas que, para ele, representam tudo. Segurança, rotina e dignidade. Um fio de afeto que sustenta o presente.

Seu Boêmio chegou ao abrigo sem documentos, sem saber o próprio nome. Foi encontrado nas ruas, sozinho, depois de anos em situação de abandono. Ganhou o apelido carinhoso, mas que em breve, deve receber um nome oficial: Francisco de Assis. Não sabe dizer quantos anos tem, mas a equipe estima algo em torno de 75. O que ele sabe e faz questão de repetir é que, neste lugar, ele aprendeu a viver de novo.
Dona Maria Domícia tem 77 anos e um sorriso que chega antes da fala. Ao contrário de muitos no abrigo, ela não se fecha. Abre a porta do quarto e o coração com a mesma facilidade. Foi esquecida pela família. Mas não guarda mágoas. Ali, encontrou o que chama de refúgio.

“Eu gostava de fazer um pouco de tudo. Amava dançar, ouvir música romântica, especialmente de Waldick Soriano. Quando era jovem, adorava trabalhar”, conta, com o olhar perdido em lembranças boas.
Hoje, sua vida é mais calma. Mas não menos cheia de sentido.
“Aqui é minha casa. Amo estar aqui, me sinto bem feliz. Sou bem cuidada pelas pessoas”, conta.
Onde o afeto é parte do cuidado
Assim como Seu Boêmio e Dona Maria Domícia, outros tantos idosos vivem e compartilham o mesmo espaço. O Abrigo Casa do Idoso, no município de Timon, a cerca de 426 quilômetros de São Luís, é um retrato vivo do acolhimento possível. Fundado em 2019, o lugar faz a diferença não por ter grandes estruturas, mas por oferecer algo que muitos perderam ao longo do caminho: presença e cuidado com afeto.
Hoje, abriga sete moradores: quatro homens e três mulheres, com idades entre 67 e 87 anos. A instituição é mantida pela prefeitura e conta com o apoio de órgãos como a Defensoria Pública do Maranhão e o Ministério Público, que atuam no acompanhamento e na garantia dos direitos desse público.

Ali, quem cuida também escuta, também sente. Kátia Cilene, supervisora da casa, conhece cada idoso pelo nome, pelas histórias, pelo olhar. Ela vê de perto, todos os dias, o impacto da ausência de vínculos familiares, um vazio que o tempo não preenche, mas que a atenção diária tenta suavizar.
“Eles sentem falta da família, sabe? Do abraço, da conversa, de se sentirem lembrados. A gente tenta preencher esse espaço com presença. Acolhe, ouve, estimula memórias boas. Somos a família deles”, conta ela.

O abrigo tem capacidade para nove moradores e vive quase sempre com todas as vagas preenchidas. O telefone de Cátia não para. São filhos, sobrinhos e netos em busca de um lugar seguro para alguém que amam, ou, às vezes, apenas conhecem de longe.
“Eu escuto, explico que aqui é o último recurso. Que antes de trazer, é preciso tentar tudo. Porque vínculo familiar... esse, a gente não substitui”, afirma com firmeza, mas também com carinho.
Relações que curam, rotinas que reconstroem
Para muitos idosos, viver em uma Instituição de Longa Permanência pode parecer o fim. Mas, em ambientes acolhedores, é possível recomeçar. O psicólogo Ricardo Oliveira, especialista em saúde mental, destaca que as instituições de longa permanência — os conhecidos asilos ou ILPIs — quando bem estruturadas, vão além da assistência básica.
“Elas recriam vínculos, oferecem cuidado, afeto e uma nova rede de apoio entre profissionais e residentes. Mesmo fragilizados, muitos idosos reencontram ali segurança, autoestima e novos sentidos para suas histórias”, explica.
Envelhecer no Brasil: entre estatísticas e solidão
No Brasil, mais de 32 milhões de pessoas têm 60 anos ou mais, mas apenas 0,5% vivem em instituições de longa permanência, espaços ainda escassos e concentrados principalmente no Sudeste e Sul.

No Maranhão, com uma população idosa que ultrapassa 850 mil, existem apenas 20 ILPIs reconhecidas, das quais só quatro são públicas, somando 438 vagas para uma demanda crescente. Em São Luís, unidades como o Solar do Outono enfrentam filas de espera que chegam a 19 pessoas por vaga, enquanto a Defensoria Pública e o Ministério Público acompanham de perto essas instituições para garantir direitos e dignidade a quem vive ali.
A pressão sobre os serviços só cresce. Entre janeiro de 2024 e maio de 2025, o CIAPVI registrou quase dois mil atendimentos envolvendo abandono, negligência, violência e interdições judiciais.
“O que mais recebemos são histórias de abandono total. A população está envelhecendo, mas os vínculos familiares se rompem”, conta Vinícius Goulart, defensor público e coordenador do Núcleo de Defesa do Idoso no Maranhão.

A resposta da Defensoria: quando acolher vira urgência
Em São Luís, apenas duas ILPIs públicas atendem gratuitamente a população idosa, e ambas estão sempre lotadas. Diante dessa insuficiência, a Defensoria Pública moveu uma ação civil pública que obteve sentença favorável: 20 novas vagas estão sendo abertas, e uma nova unidade com mais 50 vagas deve ser inaugurada ainda este ano.
Enquanto a ampliação não se concretiza, a Defensoria atua com urgência pelo CIAPVI, tentando localizar parentes para restabelecer vínculos afetivos; quando isso não é possível, busca vagas em ILPIs. O desafio é grande, pois as instituições beneficentes também enfrentam lotação, e as privadas têm mensalidades altas, em média R$ 6 mil, inacessíveis para a maioria. “Por isso, aumentar vagas públicas é uma questão de dignidade”, destaca o defensor.

Nem sempre abrigo é sinônimo de abandono
Muita gente ainda enxerga as instituições de longa permanência como lugares tristes, de esquecimento. Mas, para quem vive ali dentro, a história pode ser outra. “Muitos idosos se reconhecem nessas instituições. Se sentem acolhidos, pertencentes, valorizados. Encontram novas formas de viver e de se sentir vivos”, explica o psicólogo Eduardo Moita, especialista na Abordagem Centrada na Pessoa.

Segundo ele, o estigma ainda existe, alimentado por memórias antigas e olhares apressados. Mas é preciso romper com essa ideia. “Quando o espaço é acolhedor, ele se transforma. Vira rede de apoio”, finaliza.
O silêncio que acolhe
As rugas nas mãos de seu Boêmio, de dona Maria Domícia e de tantos outros não são só marcas do tempo. São registros de uma vida que ainda pulsa, mesmo depois de tantas perdas.

E é nesse abrigo, entre gestos simples e afeto constante, que eles ressignificam o que é lar. Porque, às vezes, tudo o que alguém precisa é de um lugar onde possa simplesmente existir e ser lembrado.
Lá fora, o sol já começa a baixar no pátio. Seu Boêmio continua sentado na cadeira de espaguete. Os olhos ainda miram o portão, mas agora sem a mesma ansiedade de antes. Já não espera mais ninguém. Talvez porque, no fundo, tenha percebido que foi ele quem foi encontrado.
