Má oclusão: quando a mordida não encaixa, a vida sente o impacto
Entenda os desafios de quem convive com a condição e a importância do diagnóstico precoce.
A pequena Giovanna, de 11 anos, tem um brilho no olhar que reflete sua energia e alegria. Entre as aulas de balé, as brincadeiras e os estudos, ela adora passar o tempo com Aurora, sua boneca favorita. Mas, por trás da espontaneidade e do carisma, um desafio começou a mudar sua rotina.
Enquanto pessoas do seu convívio, como familiares e amigos, aproveitavam refeições saborosas na escola, em casa ou em encontros especiais, Giovanna percebia algo diferente. Mastigar era difícil. O que parecia apenas um detalhe foi se tornando um incômodo cada vez maior.

"Eu me sentia normal, como todas as crianças. Mas aí percebi que meu dente não descia e comecei a pensar: ‘Nossa, estranho isso’. Eu comia e bebia normalmente, mas sabia que algo não estava certo”, conta.
O problema não era apenas estético. Aos poucos, alimentos mais sólidos foram ficando de lado.
“Eu parei de comer minhas comidas favoritas, como carne, frango e doces, porque não conseguia mastigar direito”, relembra.
A busca por respostas
Para sua mãe, Antônia Maria, a preocupação veio junto com a incerteza. No início, familiares diziam que era algo passageiro, que não havia motivo para se preocupar. Mas o instinto materno falava mais alto.
"Eu sabia que não era normal. Via minha filha tentando comer e não conseguindo mastigar direito. Isso me angustiava demais”, desabafa.

À noite, enquanto Giovanna dormia, Antônia se pegava pensando: "Será que minha filha vai conseguir falar direito? Comer sem dor? Sorrir sem medo?" A incerteza era um peso constante.
Sem condições financeiras para um tratamento particular, Antônia começou a buscar alternativas. Na época, a filha tinha apenas seis anos. A resposta veio por meio de um projeto social de uma clínica-escola de odontologia em uma faculdade particular de Teresina. Foi lá que, após uma série de exames, Giovanna recebeu o diagnóstico de má oclusão.

No início, Antônia e seu marido não entendiam bem o que aquilo significava. Parecia algo distante, complicado. Mas, conforme os médicos explicavam as consequências, a preocupação só aumentava. Ainda assim, a mãe nunca perdeu a esperança.
"Eu sabia que não seria fácil, mas meu foco sempre foi o tratamento da minha filha. O importante era garantir que ela tivesse um futuro sem limitações", relembra.
O processo foi longo e desafiador. Foram anos de consultas, exames e até cirurgias.
“Ela chorava às vezes, ficava cansada, mas eu sempre dizia que valeria a pena, que um dia ela teria um sorriso bonito e saudável”, conta a mãe.
Má oclusão: um problema de saúde pública
A história de Giovanna não é um caso isolado. A má oclusão é o terceiro maior problema bucal do Brasil, ficando atrás apenas das cáries e das doenças periodontais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a condição como um problema de saúde pública, devido à sua alta prevalência e impacto na qualidade de vida.
A má oclusão provoca o desalinhamento dos dentes, que não se encaixam corretamente gerando impactos, que vão além da estética: problemas na fala, dificuldades na respiração, alterações posturais e até dor de cabeça podem surgir. Em alguns casos, esse desalinhamento pode causar dores na articulação temporomandibular (ATM), insônia e até desgaste ósseo.

A cirurgiã-dentista odontopediatra, Alice Alencar, explica que a má oclusão pode ter diferentes causas. "A má oclusão acontece quando há um desalinhamento no encaixe dos dentes superiores e inferiores. Pode ser influenciada por fatores genéticos, uso prolongado de chupetas e mamadeiras, respiração bucal e até a perda precoce de dentes", explica.

O cenário no Brasil
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal – SB Brasil apontam que 40% das crianças de 12 anos apresentam algum grau de má oclusão, sendo10,4% classificadas como severas e 7,1% como muito severas.
Além das dificuldades funcionais, a má oclusão pode gerar impactos psicossociais. Crianças e adolescentes que enfrentam dificuldades para mastigar ou falar podem desenvolver problemas de autoestima e interação social, afetando diretamente a qualidade de vida.

Fatores de risco e desigualdade social
A relação entre má oclusão e fatores socioeconômicos também foi observada em pesquisas. Estudos indicam que adolescentes em situação de vulnerabilidade social têm 25% mais chances de desenvolver a condição, devido à menor oferta de assistência odontológica e à persistência de hábitos que agravam o problema, como uso prolongado de chupetas e respiração bucal.
Em Teresina (PI), um levantamento feito em 2024 em uma clínica-escola da Faculdade Uninassau revelou que a cada 150 atendimentos, pelo menos duas a quatro crianças, foram diagnosticadas com má oclusão. "Os números mostram que a má oclusão continua sendo uma questão de saúde pública. O problema afeta a qualidade de vida das crianças e pode ter consequências para toda a vida", alerta a cirurgiã-dentista odontopediatra, Alice Alencar.

O papel da genética na má oclusão: pesquisa da UFPI revela novas descobertas
Além dos dados nacionais, um estudo realizado em 2014 pela Universidade Federal do Piauí trouxe novas descobertas sobre a relação entre genética e má oclusão. A pesquisa foi conduzida em pré-escolas de Teresina e analisou crianças de 3 a 5 anos, focando em gêmeos monozigóticos (idênticos) e dizigóticos (fraternos) para entender até que ponto a hereditariedade influencia o desenvolvimento da má oclusão.
A professora Marina de Deus Moura de Lima, especialista em Ortodontia e Odontopediatria, explica que os resultados mostraram uma forte relação entre genética e algumas más oclusões específicas. "Nos gêmeos idênticos, que compartilham o mesmo código genético, observamos uma maior coincidência de más oclusões, como a mordida profunda e a mordida cruzada posterior. Isso indica que a hereditariedade tem um papel importante no desenvolvimento dessas condições”, detalha a pesquisadora.

Por outro lado, a pesquisa também revelou que fatores ambientais desempenham um papel significativo no agravamento do problema. Hábitos como respiração bucal, uso prolongado de chupetas e sucção do dedo foram identificados como agentes que podem piorar a má oclusão.
"A má oclusão não é apenas um problema genético. Ela é uma condição multifatorial, ou seja, pode ser influenciada tanto pela herança dos pais quanto por hábitos adquiridos ao longo da infância", esclarece Marina de Deus Moura de Lima.
Isso significa que, mesmo que a genética contribua para o problema, o diagnóstico precoce e a prevenção são fundamentais para evitar complicações mais graves. "Com um acompanhamento odontológico desde cedo, é possível intervir antes que o problema se torne mais severo e cause dificuldades na mastigação, na fala e até na respiração", destaca a pesquisadora.
O impacto na fala, respiração e autoestima
A má oclusão vai muito além da estética. Ela compromete funções essenciais como fala, mastigação, respiração e deglutição e seu tratamento não deve se limitar ao uso de aparelho ortodôntico.
A fonoaudióloga Daniele Lira destaca que, para garantir resultados duradouros, é essencial um tratamento ortodôntico aliado à terapia miofuncional com fonoaudiólogo, tanto durante quanto após a correção da mordida. "Corrigir a posição da língua dentro da boca alivia a pressão sobre a arcada dentária. E isso, sim, é um fator determinante no sucesso do tratamento", afirma.
Ela explica que hábitos como chupar o dedo, uso prolongado de chupetas ou mamadeiras influenciam diretamente no crescimento ósseo, na musculatura facial e na respiração. "Esses hábitos precisam ser eliminados até os dois anos de idade. Isso garante o fortalecimento dos músculos, o posicionamento correto da língua e o selamento labial", reforça Daniele.

Além disso, os impactos vão além do físico. A psicóloga infantojuvenil, Clara Lacerda, alerta que crianças com problemas na mordida muitas vezes sofrem com baixa autoestima e dificuldades na socialização. "A criança pode evitar sorrir, falar em público ou até se sentir insegura em interações sociais. Isso pode afetar sua autoconfiança e até seu desempenho escolar", explica.
O papel essencial da ABOR no combate à má oclusão
A Associação Brasileira de Ortodontia e Ortopedia Facial (ABOR) atua em diversas frentes para minimizar os impactos da má oclusão na vida de crianças, adolescentes e adultos. O principal compromisso é garantir informação acessível, tratamento adequado e qualificação profissional, assegurando que a ortodontia no Brasil siga os mais altos padrões técnicos e éticos.
Diagnóstico precoce e conscientização
Um dos pilares da ABOR é a orientação das famílias sobre os sinais da má oclusão e a importância do diagnóstico precoce. A presidente da ABOR-PI, Ana de Lourdes, explica que muitos pais só percebem o problema quando a criança já enfrenta dificuldades mais graves.
"A falta de informação faz com que os pais só busquem ajuda quando a má oclusão já compromete a mastigação, a fala e até a respiração. Nosso papel é garantir que essas informações cheguem às famílias a tempo de buscar um tratamento adequado", alerta.

A recomendação da entidade é que a primeira avaliação ortodôntica aconteça por volta dos sete anos, idade em que já é possível identificar alterações na mordida e intervir preventivamente. "Muitos pais acreditam que a ortodontia está ligada apenas à estética, mas o que realmente está em jogo é a funcionalidade da mordida. Quando a estética se sobrepõe à função, o impacto pode ser severo e duradouro", reforça.
Como é feito o tratamento?
O tratamento da má oclusão varia de acordo com a idade e a gravidade do problema. Em crianças, a abordagem pode incluir aparelhos ortodônticos móveis ou fixos, além de terapias para corrigir hábitos que agravam o problema, como respiração bucal e sucção do dedo. Nos casos mais severos, principalmente em adultos, pode ser necessária a cirurgia ortognática, procedimento que realinha a mandíbula e restabelece a função mastigatória.
"Quanto mais cedo o diagnóstico, mais simples e eficaz será o tratamento. Pequenas intervenções na infância podem evitar complicações na fase adulta", explica a presidente da ABOR-PI.

Capacitação profissional e combate à desinformação
Além do trabalho com as famílias, a ABOR se dedica à formação contínua dos ortodontistas. A entidade promove cursos, congressos e eventos científicos para garantir que os profissionais estejam atualizados com as melhores práticas do tratamento da doença. "A ortodontia é uma especialidade complexa, que exige estudo e atualização constante. Nosso compromisso é oferecer capacitação para que os profissionais possam atuar com responsabilidade e eficiência", destaca Ana de Lourdes.
A ABOR também combate a banalização dos tratamentos ortodônticos, alertando sobre os riscos de procedimentos realizados sem planejamento adequado. "Não é apenas uma questão de alinhar dentes, mas sim de garantir que o paciente tenha uma boca saudável e funcional. Quando a busca pela estética ultrapassa a necessidade funcional, as consequências podem ser graves e até irreversíveis", finaliza.
Prevenção: o papel dos pais na saúde bucal das crianças
Além do tratamento, a prevenção é essencial. A ABOR reforça que os pais devem acompanhar a saúde bucal dos filhos desde os primeiros anos de vida, incentivando hábitos como escovação adequada, alimentação equilibrada e visitas regulares ao dentista. "Muitas vezes, os problemas começam com hábitos aparentemente inofensivos, como o uso prolongado da chupeta ou mamadeira. Ensinar as crianças a cuidarem da saúde bucal desde cedo é essencial para evitar complicações futuras", orienta.
Uma nova rotina para Giovanna e um alerta para o futuro
O tratamento de Giovanna ainda não acabou, mas os primeiros resultados já transformaram sua rotina. Com o acompanhamento contínuo, ela e sua família veem, dia após dia, os avanços que antes pareciam distantes.
Para os pais da pequena, cada consulta e cada esforço valeram a pena.
"Ver minha filha sorrindo sem medo é a maior recompensa. Hoje, ela tem mais segurança para falar, brincar, e isso faz toda a diferença", comemora a mãe.

Agora, Giovanna já consegue comer suas comidas favoritas e voltou a ter uma rotina sem tantas restrições.
"Eu adoro frango e carne, e agora consigo mastigar tudo direitinho", conta, animada.
Além da alimentação, a mudança trouxe mais confiança. O sorriso que antes escondia inseguranças agora acompanha suas apresentações de balé e suas conversas com as amigas na escola.
"Estou ansiosa para ver meu dente todo certinho. Ainda falta um pouco, mas já mudou bastante!", diz Giovanna, com entusiasmo.

A história de Giovanna mostra que informação e acesso ao tratamento fazem toda a diferença. Mas a realidade de muitas crianças no Brasil ainda é de desconhecimento e falta de acompanhamento odontológico adequado.
Por isso, especialistas reforçam: quanto mais cedo o diagnóstico, melhores são as chances de evitar complicações no futuro. A prevenção não deve ser encarada apenas como um detalhe, mas como um investimento na saúde e na qualidade de vida das próximas gerações.